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ABUSOS... ABUSOS....

terça-feira, fevereiro 09, 2016 José Arrabal 2 Comments Category :




Jorge Luis Borges assegura que o pior dos poetas pode de modo inesperado, no favorecimento do destino, escrever um verso genial. Acrescenta, na continuidade de sua consideração, que qualquer poeta genial – quem sabe, o próprio Borges – não está isento de compor um poema medíocre.

Assim na poesia, acontece também em tudo mais que escrevemos. Uma frase antes mal ajeitada, se refeita com sensibilidade, tem condições de conceder justa beleza a um texto literário...
... e toda boa construção poética, bela imagem, trecho bem escrito, por desfeliz tropeço do escritor corre o risco de estragar a satisfação do leitor.

Recentemente recebi carta de uma professora amiga, texto bonito, devidamente bem estruturado, mas eis que num repente, lá na penúltima frase, deparei-me com a ferida plantada pelo vocábulo “reputação”. Foi o bastante para entortar o que a boa amiga escrevera.

Verdade... há palavras sem quaisquer méritos para serem transcritas. 
Entendo que precisam ser retiradas dos dicionários. 
“Outrossim”, por exemplo, é uma dessas palavras nauseabundas...
(Deus meu! “Nauseabundas”, também... é outro horror!).
* * * * * * * *

Devido a sua evidente semelhança com a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo “Comer”, evito usar o advérbio de comparação “como” imediatamente antes de algum substantivo.

É uso que desencadeia desagradável confusão.
Um elogio com o maldito “como” precedendo a um substantivo corre o risco de levar a frase a uma situação de mau gosto:
“É uma bela mulher como Sofia Loren e Marilyn Monroe.”
O que pode imaginar o leitor diante dessa abusada frase? No mínimo que o descuidado escritor é um selvagem antropófago ou um celerado mitômano sexual.
Exigente, diante de qualquer “como” antecedendo a um substantivo, em protesto cesso minha leitura e amaldiçôo o escriba, embora, no exemplo acima, reconheça seu bom gosto por belas mulheres, em especial por Sofia Loren e Marilyn Monroe, ambas tantas vezes presentes em meus sonhos de adolescência.

É entretanto inegável que a Literatura não se ilustra com deslizes desse feitio em prosa ou poesia, embora até mesmo escritores de boa lavra cedam distraídos à malfadada comilança do advérbio “como”. Desumano equívoco, armadilha de nosso idioma em que desacertadas vezes sucumbi, em outras escapei por pouco. 

É preciso estar bastante atento ao uso da bocarra desse “como”, mesmo quando não antecede a um substantivo. Trata-se de vocábulo ardiloso. Com suas rasteiras nos encaminha a tristes impasses.  

Em dada oportunidade, trabalhava numa livre adaptação para o Português do romance espanhol La vida del Lazarillo de Tormes y de sus Fortuna y Adversidades, (obra posteriormente publicada pela Editora Paulinas), quando, relendo um trecho do que escrevia, deparei-me com o seguinte atentado:
    “Como sempre mantinha uma conversa atrapalhada em seu dia-a-dia...” 
Danosa situação. Se “como sempre”, sem pausa entre as refeições, morro de indigestão, após assassinar o bem estar do leitor. 
Na hora consertei a falha, contive o indigesto engano.
* * * * * * * *

Outro desastrado abuso, obra que por distração do escritor acontece numa frase e estraga o trecho, é a cacofonia, junção de uma palavra à seguinte produzindo incômodo terceiro vocábulo que desgasta a função poética do texto.

Trata-se de desastre comum no Português falado e escrito no Brasil, por usarmos o idioma com forte destaque nas vogais. 
Em Portugal é diferente. Os escritores portugueses – e o povo de lá – destacam bem mais as consoantes das palavras e por isso usam com maior tranqüilidade as junções dos vocábulos que produzem cacófatos, o que a eles não incomoda os ouvidos.
 Ciente disto prefiro e procuro sempre ler um romance, conto ou poesia de autores portugueses mimetizando a pronúncia lusitana, o que não me irrita se encontro alguma cacofonia em seus textos.

São cacófatos que mesmo José Saramago (inquestionavelmente um grande escritor, romancista maior de nosso idioma, merecido Prêmio Nobel), com seu belo estilo coloquial, sem cerimônia e livre de receios, às vezes inclui nas suas obras e não arranha o bom gosto. É tradição, herança lírica com sustento consonantal em Camões: “Alma minha gentil, que te partiste...” 

Já em texto de autor brasileiro, se encontro um tão comum “que tinha...” silencio na hora, lamento o encontro com evidente tristeza, o que se dimensiona quando o barulhento “que tinha...” é traste de minha autoria. Meu desagrado é maior se percebo tal cacófato em livro meu publicado. 
Trata-se de desastre que acontece com qualquer de nossos escritores, seja na prosa, seja na poesia. A emoção da escrita muitas vezes nos impede a percepção do ocorrido.

Certa ocasião, em conto que terminara de escrever, deparei-me, graças à advertência de um amigo, com equivocado “por cada noite percorrida...”, suína sujeira multiplicada por doloroso “dano”, o que, perplexo, imediatamente retirei do conto.

“Há dias...” é outro cacófato bastante comum em narrativas de nossos autores.
Sem dúvida, um horror, situação “adiada” que maltrata o leitor. 
No caso, impasse fácil de resolver, bastando incluir entre o verbo e o substantivo um “alguns” suficiente para evitar o deselegante tropeço.

(Ressalvo e reconheço que por vezes o cacófato se reverte num ato falho revelador. A corja perversa de generais da ditadura sempre se arvorou agir, censurar, prender, torturar e matar “no interesse da nação”. Maldita e real “danação”.).

O fato é que escrever exige a mais precisa atenção no uso das palavras, sendo especialmente valiosa a advertência do poeta Carlos Drummond de Andrade em seu abençoado “O Lutador”:

“Lutar com palavras
................................

Palavra, palavra
(Digo exasperado)
Se me desafias,
Aceito o combate...”

Com fraterno abraço,
José Arrabal

2 comentários

  1. Ah, e se nao fosse José Arrabal, o artifice da lingua, aonde iria a reputaçao da professora?

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